Casa da Beira: arquitetura vernacular e alma ribeirinha

Essa história faz parte de uma jornada que sempre sonhamos em fazer. Com o projeto Histórias Brasil Adentro, estamos finalmente na estrada, percorrendo as cinco regiões do país para descobrir e celebrar os múltiplos jeitos de morar que só o Brasil tem. Cada matéria desta série é uma parada em busca de casas com alma, que falam sobre pertencimento, memória e identidade. Seja bem-vindo à nossa viagem!

Uma casa onde se pode olhar o tempo. Essa seria uma boa maneira de descrever a Casa da Beira, mas a verdade é que esse lar é tão especial e possui tantas camadas que uma só definição não basta para abraçar o seu significado.

Em primeiro lugar, é preciso falar sobre sua localização – onde essa casa mora e porquê cada detalhe ali tem a ver com o entorno. O espaço fica na vila de Joanes, na Ilha de Marajó, no Pará. Tanto a arquitetura vernacular quanto os objetos repletos de histórias, e até mesmo a forma de utilizar os ambientes, homenageiam o jeito marajoara de viver. De frente para o nascer do sol e para a baía do Marajó, a casa se conecta totalmente à natureza: é banhada pela luz e varrida pelo vento que abranda o calor.

Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará

Em seguida, temos que apresentar as pessoas que vivem aqui – pois sem elas o espaço jamais teria o mesmo valor. Andréa Feijó é uma artista e educadora apaixonada pelo Marajó. Um de seus trabalhos mais representativos é o Coletivo Marajó Estampado, que desenvolve estampas inspiradas no repertório gráfico da cerâmica marajoara. Paulo Ribeiro é arquiteto e fotógrafo, nascido em Belém, mas frequentador da ilha desde os primeiros meses de vida pelo fato de sua família possuir uma fazenda na região. Em seu tempo livre, ele anda de bicicleta pelas trilhas locais e aproveita para registrar cenas cotidianas da vila em suas fotografias.

O desejo de Andréa por um refúgio cercado pela natureza foi o ponto de partida para a Casa da Beira. A princípio o espaço foi pensado somente para ela, mas não demorou muito para que Paulo se encantasse por este outro lado da ilha – menos ligado aos campos dos vaqueiros e búfalos, e mais voltado para o rio-mar dos pescadores.

Assim, o que começou em 2015 como uma morada-ateliê, logo expandiu seu propósito. Com o tempo, a casa principal ganhou anexos e se transformou em uma hospedaria de vivência, criada para acolher quem busca não apenas um lugar para ficar, mas uma imersão no ritmo das marés e na cultura local.

Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará

A casa faz um diálogo profundo com o território e reúne os saberes do casal em suas áreas de atuação, como arquitetura, arte, design, fotografia, engenharia e educação. Três princípios essenciais guiaram o projeto: a inspiração na arquitetura vernacular dos ribeirinhos, o máximo aproveitamento da ventilação e iluminação naturais para garantir o conforto ambiental, e a ideia de organicidade – que permite à construção, feita de madeira, transformar-se continuamente, o que é outra característica marcante das casas da região.

E já que a admiração pela arquitetura ribeirinha é a alma da casa, vale destacar detalhes específicos pensados com todo o cuidado por Andréa. Elevada do chão sobre pilotis de maçaranduba, a construção parece flutuar, deixando o térreo livre como um grande espaço de convivência. Outras madeiras da região estão presentes, como angelim na estrutura e cupiúba nos pisos e nas paredes, que ganham durabilidade com a técnica do “mata-junta”, evitando a retenção de umidade nas emendas.

A inteligência climática também se percebe na implantação voltada para o vento e o sol da manhã, e nas grandes portas-cocheira da fachada, que permitem controlar a brisa e a privacidade. Lá no alto, perto do telhado de duas águas, as treliças de madeira garantem que a casa respire e receba luz mesmo nos dias em que fica fechada. O toque final fica por conta dos detalhes: as tramelas de madeira usadas para travar portas e janelas, as sanefas coloridas, e o nome da casa, pintado no frontão por um abridor de letras de barcos de Afuá, selando sua identidade marajoara.

Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira: arquitetura vernacular e alma ribeirinha
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará

E como se o lugar quisesse compartilhar suas próprias memórias, uma história fascinante literalmente bateu à sua porta. Certo dia, os fortes ventos da baía quase levaram ao naufrágio o barco São Benedito, que acabou na praia vizinha à casa. Os pescadores da vila ajudaram a salvar a tripulação e a carga, e como agradecimento, o proprietário lhes doou os escombros da embarcação. Na semana seguinte, Paulo se deparou com a cena inesquecível do barco sendo cuidadosamente desmontado na areia. As peças de madeira, antes parte do casco e da estrutura, agora pareciam verdadeiras esculturas. Foi um presente inesperado: o casal teve a chance de levar um pedaço daquela história para dentro de casa. Das mãos dos pescadores, eles adquiriram as tábuas que formavam o mural de São Benedito e duas longarinas imensas, com 14 metros de comprimento, que se transformaram na escada e no deck que hoje levam até a praia.

Se na arquitetura já cabem tantos elementos especiais, na decoração não é diferente – por dentro, a casa revela novas camadas de histórias e criatividade. Andréa se guiou pela vontade de ter um refúgio de simplicidade e beleza, mas que não exigisse grandes manutenções. Aos poucos, o espaço foi sendo preenchido carinhosamente com a chegada de móveis de família, como a penteadeira que pertenceu à sua mãe. Para Andréa, a casa é uma “instalação do viver”, um organismo que segue em construção e ganha novos significados com o tempo.

No andar superior, por exemplo, isso se torna visível. O espaço conta com um único ambiente, onde se trabalha, dorme, lê, ou simplesmente se admira o horizonte deitado na rede. E já que Andréa enxerga o lugar como uma extensão natural de seu ateliê, os grafismos marajoaras cobrem trechos das paredes, fazendo da casa uma grande tela aberta a novas intervenções. Em um lar como esse, realmente era inevitável que arte e cotidiano se entrelaçassem.

Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará

Espalhados pelas paredes e cantos, as obras de arte e o artesanato tecem uma rede de referências que conecta a casa com toda a região. São trabalhos que celebram a estética paraense, como a gravura “Açaí”, de Emanuel Nassar, e as criações de Jair Jr., com sua série de placas de divulgação de serviços populares, como a cartomante. O artesanato é um capítulo à parte, reunindo desde a força dos objetos indígenas de diversas etnias até a leveza dos brinquedos de miriti de Abaetetuba. Do Marajó, a ênfase é para a cerâmica marajoara do Ateliê Arte Mangue Marajó, e para os objetos do Caroço Arte, que utiliza restos de embarcação recolhidos na praia da vila de Joanes.

Andréa diz que a decoração nasce a partir do uso da casa: “Penso o espaço enquanto vivo ele. Valorizo o processo e a vivência como método para tudo o que faço. Gosto de tudo, mesmo as imperfeições, porque me reconheço nelas”.

O jardim da casa é mais uma tradução do carinho de Andréa pela terra e por suas memórias. Inspirada na relação que sua avó tinha com as plantas, ela cultiva um espaço que é mais um acervo de histórias do que um projeto paisagístico. A regra é a simplicidade: ela ama as plantas que se espalham com facilidade, onde uma simples poda já se transforma em uma nova muda. “A ideia sempre foi fazer um jardim afetivo e de fácil manutenção, porque não quero ter trabalho”, ela explica.

Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará
Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará

Cada espécie conta uma história: há o jasmineiro, plantado ao lado do chuveiro externo para perfumar o banho com cheiros de infância; os galhos trazidos de viagens que viraram plantas viçosas; e até mesmo uma moradora especial, resgatada de uma calçada em Belém após uma poda. Além das lembranças, o jardim é generoso em seus presentes. Ervas aromáticas, medicinais, frutíferas e plantas tintoriais que Andréa usa em seus trabalhos têxteis crescem por ali. Para ela, o maior prazer é acompanhar de perto todo o ciclo, desde o plantio até a colheita, como a do capim-limão, que virou seu chá preferido ao fim da tarde.

A casa já era tão cheia de vida que parecia pedir por mais gente e mais histórias. Assim, o desejo de Andréa e Paulo de conhecer pessoas transbordou de forma natural, e eles abriram as portas da Casa da Beira para receber hóspedes. Mas essa experiência vai além da hospedagem – está mais para uma teia de encontros, onde muitos visitantes se tornam amigos e as trocas verdadeiras acontecem em meio a conversas no café da manhã ou nos deliciosos jantares. Assim, a hospedaria não só ajuda a manter viva a estrutura e o propósito criativo do lar, mas também fortalece todo o território, incentivando um turismo voltado para a cultura local, o artesanato e o modo de viver marajoara.

Na Casa da Beira, o tempo corre diferente, guiado pelo sol, pela maré e pelo vento. É um lugar que encanta a partir das histórias que guarda. Em meio ao balanço da rede, uma pergunta flutua no ar: “De que vivem tuas memórias?”. E ali, entre as águas e o céu do Marajó, a resposta logo vem – vivem de afeto, de encontros e da coragem de construir um lar que é, em si, a própria memória.

Casa da Beira - Marajó - Belém do Pará

3 dicas da região

Como Andréa e Paulo são bons conhecedores da Ilha de Marajó, pedimos que o casal nos passasse três dicas imperdíveis para quem pretende visitar a região:

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Fazer o passeio de barco com flutuação na correnteza, com pescadores locais no igarapé do Limão, em Joanes.

Visitar o Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari, com parada para almoço no restaurante da Zézé.

Dançar carimbó no Tambores do Pacoval, em Soure, em um sábado à noite, e jantar na Cozinha Tucupi.

Texto por Bruna Lourenço | Fotos por Leila Viegas

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